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Gata pode ser coautora de ação que apura maus-tratos
Uma decisão da 2ª Vara Cível da Comarca de Santa Maria, em Santa Catarina, permitiu que uma gata se torne coautora da ação judicial que apura maus-tratos durante um procedimento cirúrgico.
Na ação, a tutora pleiteou o reconhecimento da gata como parte na ação. Ao avaliar a questão, o juiz considerou decisões já existentes sobre o tema na Justiça brasileira.
Segundo o magistrado, "em que pese o reconhecimento da capacidade de ser parte dos animais domésticos seja um tema controverso, cada vez mais a jurisprudência dos Tribunais brasileiros caminha no sentido de reconhecer a possibilidade de animais domésticos serem autores em processos judiciais, especialmente nas ações que versem sobre o respeito, a dignidade e o direito desses seres".
O juiz destacou que, no caso, a ação de reparação de danos trata de alegados maus-tratos vivenciados pela autora não- humana em procedimento cirúrgico, representada por sua tutora, e que, assim, "verifica-se ser cabível o reconhecimento da legitimidade ativa da coautora- não humana".
A professora Tereza Rodrigues Vieira afirma que a decisão é extremamente importante para o reconhecimento dos direitos animais. Segundo ela, diversos estudos já comprovaram que os grandes primatas, elefantes, golfinhos e animais domésticos, como os cães, são seres inteligentes, providos de consciência de si, requisitos filosóficos importantes para o seu reconhecimento diferenciado.
A docente explica que os primeiros animais reconhecidos como autores em processo judicial no Brasil foram os cães Spyke e Rambo, em 2021, em Cascavel, no Paraná. “Os precedentes concretos dão suporte a mais pedidos e decisões, servindo como exemplo para outros julgamentos”.
Proteção legal
De acordo com a advogada e professora Helena Cinque, “a Constituição Federal protege os animais contra atos de maus-tratos por meio do art. 225, § 1º, inciso VII e, por tal proteção, eles se tornaram sujeitos de direitos, logo, seres que devem ser protegidos legal e judicialmente”.
Helena acrescenta, no entanto, que apesar dos animais possuírem legitimidade ad causam, eles não possuem legitimidade ad processum, ou seja, a capacidade para estar em juízo sem que haja uma devida representação, uma vez que são absolutamente incapazes. “O artigo 1.767, I, do Código Civil é claro ao dispor que aqueles indivíduos que, de forma permanente, como os animais, não puderem exprimir sua vontade, devem ser representados por intermédio do instituto da curatela.”
“O indispensável progresso do nosso ordenamento jurídico tem interpretado a legitimidade ativa dos animais em ações judiciais perfilada ao princípio do acesso à justiça, disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. Portanto, os animais, enquanto sujeitos de direitos, são providos da capacidade de ser parte em juízo, cuja legitimidade deriva não apenas do direito natural, mas também do direito positivado”, observa.
Contemporaneidade
Segundo Tereza Vieira, há algumas décadas, doutrinadores brasileiros contemporâneos vêm reconhecendo os animais como sujeitos de direitos, e não mais como coisas. “Boa parte do Judiciário também vem considerando que os animais devem ser respeitados como sujeitos de uma vida e dotados de consideração moral, num apropriado aparato de inclusão e proteção.”
“A senciência animal demonstra racionalidade própria, permitindo que experimentem vários sentimentos e sensações, como dor, prazer, fome, sede, cansaço, tristeza, alegria e sofrimento. Corta-nos o coração ver um animal doente, sofrendo maus- tratos ou perambulando pelas ruas em decorrência do abandono. São seres frágeis, que necessitam de tutela jurídica”, ressalta.
Na visão da especialista, decisões como esta demonstram a evolução do Judiciário. “Muitos magistrados já não tratam mais os animais domésticos como propriedade privada, reconhecendo proteção aos interesses dos animais.”
Apesar disso, ela pondera: “Na ausência de uma base legislativa explícita, alguns tribunais esquivam-se de decisões avançadas e, por isso, aguarda-se o reconhecimento expresso do Código Civil.”
“Magistrados preocupados com a vida digna do animal reconhecem a sua importância e aguçam o interesse do Legislativo em propor e aprovar leis cada vez mais protetivas baseadas no respeito e consideração moral. O Poder Judiciário vem abrindo passagem, firmando posição e encorajando novas decisões progressistas e sensíveis à causa animal”, avalia.
De acordo com a professora, a sociedade brasileira vem recepcionando cada vez melhor as decisões judiciais que têm reconhecido a constituição de distintos núcleos familiares diversos da entidade familiar tradicional. “O Direito e a sociedade contemporânea já reconhecem os vínculos fundados no afeto, o qual representa solidariedade, carinho, lealdade, proteção, apego e etc.”
“As pessoas têm liberdade e autonomia para constituir o tipo de família que melhor lhe agradar em busca da sua felicidade. Assim, surge a família multiespécie como uma das formas de família, demonstrando que seus integrantes humanos podem estar ligados afetivamente a um animal de estimação, o qual pode ser visto como membro da família”, comenta.
Ela afirma que o Direito de Família contemporâneo corrobora com a Constituição Federal quando esta garante a proteção da família. “Além da guarda compartilhada, diversos outros direitos já vêm sendo reconhecidos judicialmente, como o direito a alimentos, direito à visitação, direito a viajar em aeronaves com seus tutores e transporte em metrô e ônibus públicos, entre outros.”
“Sou tutora de um maltês chamado Michel e reconheço o valor precioso que o animal de estimação tem para as pessoas. Contudo, devemos ressaltar que o animal merece proteção jurídica, não porque serve ao homem, mas por distinguirmos que tem valor por si próprio”, frisa.
Com a compreensão do vínculo existente entre homem e animal pela sociedade, conclui Tereza Vieira, que o Poder Judiciário vem reconhecendo a importância das novas configurações da família multiespécie e contribuído para o amadurecimento ético da população.
Por Débora Anunciação
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